Homilia da Celebração Ecuménica 18-01-2012

Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos

Igreja Metodista do Mirante

Porto – 18/01/2012

“TODOS SEREMOS TRANSFORMADOS PELA VITÓRIA DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO” (I Cor. 15, 51-58)

Revº. Sifredo Teixeira,
Bispo da Igreja Evangélica Metodista Portuguesa
Senhor D. Pio Alves, Bispo do Porto
Pedro Eisele, diácono responsável da Igreja Evangélica Alemã do Porto
Revºs Presbíteros e Pastores
Prezadas Irmãs e Irmãos,

Que a paz de Cristo ressuscitado seja convosco. Ámen.

Tem sido sempre sob um forte sentido de responsabilidade e de profunda humildade que, ao longo de 40 anos completados nesta Semana, me apresento quando sou chamado a falar nestas celebrações. E esta vez não foge à regra, tanto mais que o tema deste ano nos convida a refletir sobre a transformação que nos vem da vitória de nosso Senhor Jesus Cristo, um tema que me é muito caro e perante o qual procuro compaginar o meu comportamento como cristão.

A perícope escolhida pelas Igrejas da Polónia refere o modo como o Apóstolo Paulo procura explicar aos cristãos de Corinto o mistério da morte à luz da fé, “eis que vos digo um mistério: nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados”. Paulo faz-se eco da tradicional cenografia apocalíptica “o som da trombeta” e parece que tinha a esperança de ser testemunha da vinda do Senhor na sua vida. Em tudo isto, o Apóstolo pretende explicar a ressurreição dos mortos como sinal da vitória da vida sobre a morte outorgada pela ressurreição de Jesus Cristo.

A vitória leva-nos ao entusiasmo celebrativo, tão a jeito do gosto comum. Permiti, antes, que vos fale na ação transformadora de Deus, através da oração e reflexão como caminho para a compreensão e o crescimento da fé. É que, como explica o teólogo Hans Kung, “para Jesus, Deus jamais atua exclusivamente num âmbito ‘sobrenatural’. Deus opera no meio do mundo e cuida acima de tudo o que rodeia o homem, grande ou pequeno, pelo que resulta supérflua qualquer preocupação angustiosa pela própria sorte”i. Na verdade, o centro da mensagem de Jesus está na proclamação “o Reino de Deus está próximo”, enfatizando quer a sua chegada quanto a sua proximidade. Jesus diz-nos que Deus é um ‘Deus dos homens’, apresentou-O como salvação para a humanidade e viveu e pregou a soberania de Deus referindo-se a Deus na sua relação com o homem e ao homem na sua relação com Deus. O teológo dominicano Shillebeeckx refere-se a esta relação mútua entre Deus e o homem como “uma realidade que se vive de modo tanto teológico como antropológico”ii. Fixemo-nos, então, em três narrativas do Evangelho em que Jesus nos explica como podemos ser “transformados” à medida que crescemos em fé.

A primeira, do evangelho de João 3, 1-21. Jesus é procurado por Nicodemos, um fariseu chefe dos judeus, que explica a sua dúvida acerca da identidade de Jesus “ninguém pode fazer as obras que tu fazes se Deus não estiver com ele”, isto é, reconhece nas palavras e ações humanas de Jesus uma marca divina. Jesus responde-lhe: “ninguém pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo”. Eis o cerne da ‘transformação’ que Jesus nos propõe, decorrente da nossa relação de intimidade com Deus, de escuta e de obediência à Sua vontade. O que Jesus nos propõe é a transformação da nossa condição humana, pecadora, por um estado de vida em que o nosso olhar é purificado pelo colírio da sua presença no nosso coração. É esta a transformação interior que nos leva a ver em Jesus a condição de filho de Deus expressa no olhar misericordioso e na condição profunda sobre a natureza humana. Nesta circunstância, somos convidados a perceber a nossa fragilidade, mais do que a nossa sabedoria, a nossa riqueza ou o nosso poder e a compreender que o que quer que sejamos na nossa vida, em termos de sucesso ou vitória, tudo depende da acção divina em nós. Nesse “nascer de novo” está o cerne de uma vivência tocada e alimentada por Deus. Como Paulo experimentou e escreveu na sua segunda carta aos Coríntios, 12, 8-10, em resposta ao pedido elevado ao Senhor a propósito do que ele identificava como um “espinho na carne”, recebeu de Deus a seguinte resposta: “a minha graça te basta. Pois a minha força manifesta-se melhor na fraqueza dos homens”. E o Apóstolo conclui: “Acho muito melhor orgulhar-me das minhas fraquezas, para que a força de Cristo desça sobre mim” e diz “Alegro-me, portanto, com as fraquezas, as injúrias, as privações, as perseguições e as angústias que passei por amor de Cristo” e enfatiza: “quando me sinto fraco, então é que sou forte”. Ora, para que a nossa condição humana se transforme à luz da fé exige que façamos um esforço por compreendermos o nosso presente e nos compreendermos a nós próprios em todas as dimensões da nossa existência: razão e coração, consciência e subconsciência, história e sociedade, ciência e cultura.

A segunda narrativa, do Evangelho de Mateus 19, 16-22. Um jovem rico aproxima-se de Jesus perguntando-lhe que havia de fazer para conseguir a vida eterna. Depois de indagar do cumprimento dos mandamentos da lei de Moisés por parte do jovem, Jesus responde-lhe: “se queres ser perfeito vende tudo o que tens e dá o dinheiro aos pobres. Ficarás assim com um tesouro nos céus. Depois, vêm e segue-me”. E o jovem foi-se embora triste porque era rico. A transformação da primeira narrativa refere-se à interioridade da pessoa, a desta tem a ver com o comportamento.

Não há nada mais difícil para uma pessoa de riqueza firmada do que o despojamento do que lhe pertence pela ajuda sincera e sem interesses aos outros. A história da humanidade é bem a imagem da dificuldade sentida por aquele jovem e até por muitos dos ricos que conhecemos. Todos gostamos de exibir a nossa “riqueza”, mas muito poucos ou quase nenhuns se preocupam em partilhá-la. Nesta crise económica, financeira e social em que nos encontramos, dizem-nos as estatísticas que é cada vez maior o fosso entre pobres e ricos e que à cabeça da lista de países em que esse fosso mais se alarga está o nosso País. E isto não obstante toda a espécie de solidariedade que os órgãos de comunicação social nos mostram como sinais de preocupação social. O que está em causa, não é uma mera transferência de dinheiro ou de bens de umas pessoas para outras, mas, a necessidade de uma visão do coração, uma vontade interior que transforme o possuidor de bens em usuário desses bens, porque todos os bens pertencem a Deus. Além disso, importa que os que mais têm se apercebam de que são parte do mundo em que existem os que nada têm. Isto não é um imperativo moral, pois, nem os ricos em si mesmos são maus, nem os pobres enquanto tal são bons. Muito mais do que isso, esta é uma questão de fé e de aceitação da soberania de Deus. A transformação para que Jesus nos aponta é a da substituição da nossa mentalidade de proprietários, possuidores de bens, por uma compreensão da riqueza como algo a ser usado, como mordomos, no contexto da fraternidade humana de que todos somos parte.

A terceira narrativa, segundo S. Marcos 10, 35-45. Tiago e João, filhos de Zebedeu, queriam ocupar os dois primeiros lugares quando Jesus estivesse no seu Reino Glorioso. Jesus respondeu-lhes: “vós não sabeis o que me pedis”. Gerou-se a confusão entre os outros discípulos, de tal forma que Jesus teve de intervir dizendo “os que governam os povos têm poder sobre eles e os grandes são os que mandam neles. Mas entre vós não pode ser assim. Pelo contrário, aquele que quiser ser grande deve servir os outros, e aquele que quiser ser o primeiro deve ser o criado de todos”. Esta é a questão do poder.

Olhemos para Jesus em dois momentos cruciais da Sua vida. No deserto, ao contemplar os reinos do mundo que lhe seriam dados se adorasse o diabo, que rejeita porque “só a Deus adorarás”. No tribunal, em frente de um Pilatos admirado com o seu silêncio “Não sabes que tenho poder para te soltar e para te mandar crucificar”, a que Jesus responde: “Não terias qualquer poder contra mim, se Deus não to desse” (S. João 19). Estes dois momentos da vida de Jesus mostram-nos que na vivência da fé há uma distinção entre autoridade e poder. Demonstra-nos que Jesus tinha autoridade – reconhecida pelo povo nas suas palavras e ações – mas que era destituída de poder. A Sua autoridade baseava-se na excelência da misericórdia, no cuidado para com os mais fracos, na aceitação dos mais necessitados. E disse uma vez: “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim para chamar os justos, mas sim os pecadores, para que se arrependam” (S. Luc.5,32).

Em resumo, nestas 3 narrativas encontramos os caminhos para a ocorrência do Reino de Deus numa humanidade transformada. É essa ao serviço de que, como Igrejas, nos devemos empenhar e trabalhar unidos, ao redor de Jesus, “o homem que se compraz em Deus”iii. Na verdade, a unidade dos cristãos para que o mundo creia e se transforme radica em atitudes de conversão e renovação interior, pela aceitação da soberania de Deus, para que vacilem as verdades e convicções a que nos agarramos; exige um espírito de despojamento tanto em bens materiais como na aceitação mútua à luz da misericórdia compassiva e da bondade generosa de Deus, que se opõe a todas as formas de sofrimento e pecado; pede-nos que nos firmemos na autoridade da Palavra revelada que une e aconchega, ao invés de atitudes de poder que separam e provocam sofrimento. Numa palavra, a transformação a que Jesus nos chama radica na nossa permanente conversão e autocrítica, confrontando-nos com as nossas falhas. Ainda, como crentes, qualquer que seja a comunhão eclesiástica a que pertençamos, com escreveu o Sr. Arcebispo de Cantuária, na Carta de Advento de 2011, “temos de ter a precisa humildade para compreender que todos vivemos em Igrejas imperfeitas, que todos precisamos de conseguir juntos em esperança a plena presença do nosso Senhor, e que todos, por tanto, devemos estar desejosos de receber uns dos outros quaisquer dons de Deus que nos podem ser dados através deles”.

Assim nos faremos verdadeiras testemunhas do Senhor ressuscitado e instrumentos de revelação de caminhos e valores, mostrando ao mundo ávido de compreensão e amor que não há mundo sem Deus.

Que assim seja. Ámen.

 

Bispo D. Fernando Soares - Igreja Lusitana


i Hans Kung in “Existe Deus? Resposta ao Problema de Deus no nosso Tempo”, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1979, pág 913.

ii Edward Shillebeeckx in “Jesus – La Historia de un Viviente”, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1981, pág. 127

iii Idem, pág 127